ANAIS DO JORNALISMO
Escândalos da República 1.2
Por Mario Sergio Conti em 07/08/2012 na edição nº 706
Reproduzido da piauí nº 70, julho/2012; intertítulos do OI
Posfácio à nova edição de Notícias do Planalto mostra onde foram parar os jornalistas que cobriram o impeachment de Collor e o que aconteceu com a imprensa desde então
Os jovens repórteres que expuseram o governo de Fernando Collor não
apuram mais notícias do Planalto. Cada qual teve razões particulares
para isso. Vontade de fazer algo diferente, ambição de ganhar mais, o
avanço da idade, pressões familiares, a competição e as chatices do
metiê, o bloqueio da carreira, desilusões e também ilusões, convicções
políticas ou a ausência delas, as mudanças no poder e no país. Tudo isso
contou e conta. Mas o denominador comum dos que abandonaram a imprensa
foi terem ido trabalhar em empresas, suas ou de outros, que se dedicam a
atender políticos profissionais, homens de negócio e instituições.
Agora eles são assessores de comunicação, relações-públicas e
publicitários. Ministram media training. Redigem discursos. Burilam a
imagem pública de sua clientela e alardeiam os seus feitos. Gerem
gabinetes de crise, contratados por gente de bens denunciada nos órgãos
de imprensa nos quais antes trabalhavam. Quem ontem apontava as
dissonâncias entre o marketing e a realidade é hoje marqueteiro.
O pano de fundo da migração de repórteres do caso Collor para
atividades de divulgação foi a abertura de um novo ciclo na disputa por
notícias. Criaram-se e cresceram dezenas de companhias, algumas delas
minúsculas e outras com mais jornalistas que redações da grande
imprensa, as quais vendem serviços a quem quer aparecer direito em
jornais e revistas, no rádio e na televisão. Continua a existir a
pressão sobre profissionais e patrões, exercida por protagonistas de
notícias e anunciantes da imprensa. Eles se esfalfam para que certas
reportagens sejam publicadas de determinada maneira, no mais das vezes
sem destaque e com a predominância da versão daquele que pressiona. Mas
agora, adicionalmente, se disseminaram agências que visam controlar
fatos jornalísticos já no nascedouro, ou então reagem a eles para
moldá-los.
Com o novo ciclo, abriu-se um mercado para repórteres que investigaram
Collor. Eles eram experientes em falar com o poder e se comunicar com o
público. Detinham conhecimento prático sobre a feitura de reportagens
políticas de impacto. Sabiam dos mecanismos internos da grande imprensa.
E mantinham laços com aqueles que continuaram no jornalismo –
repórteres, colunistas, editores e diretores de redação –, a quem
poderiam recorrer para convencê-los da correção de seus contratantes.
Graças a esse currículo eles passaram a trabalhar lado a lado com
pesquisadores de opinião pública, advogados, sociólogos, analistas de
mercado, fonoaudiólogos, figurinistas, cabeleireiros, maquiadores e
afins. Poderoso e rico, o mercado não para de crescer. Governos,
ministérios, secretarias, empresas e partidos de todo porte e ideário
têm verbas para assalariar quem os ajude a lidar com notícias. E gravita
ao seu redor uma nebulosa de companhias e consultores que lhes presta
serviços, disputando concorrências e contas carnudas.
Exibicionismo collorido
Luís Costa Pinto, que fizera a entrevista na qual Pedro Collor acusava
Paulo César Farias de ser testa de ferro de seu irmão, tornou-se
consultor. Prestou serviços ao deputado João Paulo Cunha, réu no
mensalão, e a Agnelo Queiroz, governador de Brasília cuja administração
foi acusada de relacionamento espúrio com o contraventor Carlos Augusto
de Almeida Ramos, o Cachoeira. Mino Pedrosa descobrira o motorista
Eriberto França, que comprovou o elo econômico entre Paulo César Farias e
o presidente. E posteriormente ele trabalhou na primeira campanha de
Fernando Henrique Cardoso, e foi assessor de Roseana Sarney e Joaquim
Roriz, o ex-ministro de Collor que renunciou ao Senado ao ser apontado
como corrupto. A sua agência de comunicação prestou serviços a Carlos
Cachoeira.
Mário Rosa, que revelara as desgraças da Legião Brasileira de
Assistência presidida por Rosane Collor, virou gerente de crises. Ele
participou de campanhas eleitorais e foi consultor de Ricardo Teixeira,
quando este era presidente da Confederação Brasileira de Futebol, e de
Daniel Dantas, dono do banco Opportunity. Assim como Costa Pinto, Rosa
foi contratado por Fernando Cavendish, ex-proprietário da empreiteira
Delta, implicada nas traficâncias de Cachoeira.
Expedito Filho relatara o exibicionismo da corte collorida e registrara
as acusações de Renan Calheiros ao presidente, e passou a atuar em
relações públicas. Gustavo Krieger, que levantara os gastos do porta-voz
Cláudio Humberto Rosa e Silva num cartão de crédito, foi chamado a
dirigir a campanha publicitária de Gabriel Chalita, do PMDB, à
prefeitura paulistana.
Plataformas distintas
Primeiro candidato a usar o marketing de maneira sistemática, Fernando
Collor foi precursor da nova constelação. Ele posou para fotógrafos e
câmeras de televisão em jatinhos, carros esportivos importados, fazendo
exercício e com livros debaixo do braço. Vestiu fardas marciais e
camisetas estampadas com mensagens de autoajuda. Ostentou adereços do
luxo cosmopolita e adotou uma estudada postura de galã. Collor foi mais
um atualizador de técnicas de exploração de imagens praticadas nos
países centrais e menos um reprodutor do atraso dos sertões alagoanos.
Na sua derrocada, os recursos de ilusionista contaram pouco, e de quase
nada valeu a proximidade com patrões e o apoio de publicações e
emissoras. O que acabou por se impor foram as manifestações populares
contra o presidente, que se alimentaram de reportagens mostrando que a
realidade do Planalto e da Casa da Dinda divergia da efígie higienizada
que Collor projetava.
Um dos ensinamentos que políticos, empresários e jornalistas tiraram da
eleição e da queda do presidente, portanto, foi a necessidade de
reforçar a influência sobre aquilo que reverbera na imprensa e na
opinião pública. Afinal, apesar de pioneiro, Collor fora um amador que
catara aqui e acolá procedimentos de marketing dispersos no ar
contemporâneo. Daí o fortalecimento daquilo que ele jamais teve:
profissionais em tempo integral e sólidas empresas de comunicação
política, nas quais a ideologia se subordina à técnica. Mais perceptível
nas campanhas eleitorais, o fenômeno é internacional, e o Brasil dele
participa. Volta e meia publicitários americanos desembarcam aqui,
chamados a intervir na propaganda de partidos. Da mesma forma,
marqueteiros brasileiros trabalham para candidatos da América Latina e
da África.
Exemplar tanto do abandono do jornalismo quanto da nova configuração
político-publicitária é a trajetória de João Santana Filho. Na
juventude, ele esteve ligado à música de vanguarda e ao pop, chegando a
ser compositor na Bahia, onde nasceu. Formou-se em jornalismo, trabalhou
em revistas e jornais, estudou política e relações internacionais nos
Estados Unidos e chefiava a sucursal da IstoÉ em Brasília no
governo Collor. Ali, teve papel fundamental na reportagem sobre o
motorista Eriberto França. Além de um dos autores do furo que definiu o
destino do presidente, ele é afável, organizado, criativo e bom redator.
Tinha atributos para se tornar um quadro da imprensa. Mas a trocou pela
propaganda política.
João Santana se associou a Duda Mendonça – que chefiou a primeira
campanha publicitária vitoriosa de Luiz Inácio Lula da Silva ao Planalto
– e depois se afastou dele. Mendonça admitiu algum tempo depois, numa
Comissão Parlamentar de Inquérito, que recebera no exterior cerca de 10
milhões de reais de pagamento e não os declarara ao fisco. Lula o
substituiu por Santana na campanha de sua reeleição. A equipe de
comunicação com a qual o ex-jornalista trabalhou tinha 150 pessoas. Ele
dispunha de levantamentos de opinião pública diários, alicerçados em
entrevistas de 700 pessoas em todo o Brasil e complementados por
pesquisas qualitativas com oito grupos de doze integrantes, também elas
realizadas todos os dias. Em dois meses e meio, o instituto Vox Populi,
que sondara os humores da população para Collor, fez mais de 60 mil
entrevistas para que Santana modulasse a propaganda de Lula, e criasse
os slogans “Lula de novo, com a força do povo” e “Não troco o certo pelo
duvidoso”. Ele contou a Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, que
recebeu 13,750 milhões de reais pela reeleição de Lula.
Na mesma entrevista, Santana fez uma distinção: o marketing “adapta o
produto ao gosto do consumidor. A publicidade é o instrumento que vende o
produto propriamente”. E rebateu seus críticos:
“A percepção de que esta foi uma campanha eleitoral vazia, sem debate e
inócua é um equívoco. Daqui a dez ou vinte anos, ao se comparar esta
campanha com outras anteriores, vão concluir que foi uma das mais
politizadas que o país já teve. Não houve rendição ao marketing. O eixo
central foi crescimento com distribuição de renda, diminuição das
desigualdades entre as regiões e as pessoas, inserção soberana do Brasil
no mundo e outros. Há discussão essencialmente com mais oportunidade
política do que essa? Dizer que é uma pobreza porque foi reduzido a
slogan é novamente o baixo entendimento que existeentre o que é
propaganda e marketing político.”
João Santana virou consultor de imagem de Lula. Criou para o Planalto
as marcas PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, e Minha Casa
Minha Vida. Dirigiu a propaganda na campanha de Dilma Rousseff, que
contou com 200 pessoas na área de comunicação e custou, oficialmente, 44
milhões de reais. Técnicos da campanha de Barack Obama trabalharam na
sua equipe, transferindo tecnologia de ferramentas da internet. Russos
se ofereceram para ensinar como Vladimir Putin carreou votos para o seu
sucessor, e foram rechaçados. Santana escreveu discursos e dirigiu os
principais pronunciamentos em cadeia televisiva de Lula no Planalto, e
fez o mesmo para Dilma. Levou a sua consultoria a candidatos de
plataformas distintas na Argentina, Angola, República Dominicana, Peru,
Venezuela e em El Salvador, onde ajudou a Frente Farabundo Martí de
Libertação Nacional a eleger Mauricio Funes presidente, também ele um
ex-jornalista.
Força dominante
Collor foi desbravador bem-sucedido numa outra frente, a das campanhas
eleitorais criminalizadas. No pleito anterior para presidente, quase
trinta anos antes, a televisão era rudimentar e operava regionalmente
como o rádio, não havia horário eleitoral gratuito, as pesquisas de
opinião pública tinham dimensão reduzida e jatinhos ainda não cruzavam
os céus levando os candidatos e suas entourages país afora. As campanhas
se davam por meio de jingles de rádio e comícios, acompanhados por
repórteres cujas matérias demoravam dias para chegar a jornais sem
distribuição nacional. Empregando lances de marketing grosseiros e
intuitivos – a vassoura que varreria a corrupção, a caspa no ombro, o
linguajar abstruso –,Jânio Quadros pôde vencer o marechal Henrique
Teixeira Lott, em 1960, sem que fosse necessária uma grande estrutura de
comunicação.
Como a propaganda era modesta, foi menor o peso do poder econômico na
definição dos votos. Com os programas eleitorais de televisão e rádio,
comícios com músicos pagos, carreatas e viagens incessantes, os custos
tornaram-se siderais. Cresceu na mesma medida o papel da grande
financiadora de campanhas: a burguesia que faz negócios com o Estado. E
se alastraram métodos delituosos de arrecadação de fundos. O caixa dois
adquiriu aceleração própria, perpassando o conjunto dos partidos. Serviu
e serve tanto para cacifar os postulantes num pleito como para
mantê-los no poder e preparar futuras disputas nas urnas. Foi isso que
Collor disse, recorde-se, quando Paulo César Farias lhe perguntou o que
deveria fazer com os 60 milhões de dólares que sobraram dos 160 milhões
arrecadados na campanha:
“Vai administrando o dinheiro. Use o que for necessário nesse período
de transição até a posse. Pague os salários, as viagens e as hospedagens
da nossa equipe. O resto você guarda para a gente gastar na campanha
eleitoral do ano que vem.”
Num jantar no Rio, em 1992, Paulo César Farias riu à beça quando, a
propósito de empreitadas eleitorais, repeti-lhe a observação de Trotsky
acerca da casta stalinista, que nasceu nos primeiros anos do regime
soviético, num quadro de penúria no qual os bolcheviques foram obrigados
a repartir magros recursos: quem tem algo a dividir nunca se esquece de
si mesmo.
Assim como os 60 milhões de dólares de Collor e PC Farias serviram,
inadvertidamente, de carburante para a futura derrubada do presidente e
para a prisão do seu caixa, outras arrecadações, sobras de campanha e
dívidas eleitorais estiveram no início de muitos dos escândalos
políticos que pipocam desde então. Há maneiras, vigentes em outros
países, de restringir o poder econômico e baixar gastos nas campanhas.
Seja no Executivo seja no Congresso, não houve interesse – ou força
dominante – para que fossem adotadas no Brasil. Quem se beneficia de um
sistema não tem por que reformá-lo.
“Mais consistência”
Ficou para trás a campanha de Lula no ano em que o povo alemão derrubou
o Muro de Berlim. Ela usou criativamente a linguagem agitprop e
brechtiana da esquerda e foi conduzida pelos seus militantes e
simpatizantes. Pôs no horário eleitoral a Rede Povo e subverteu o padrão
de qualidade da Rede Globo. Atraiu de graça atrizes e atores da
emissora, custou menos de 1 milhão de dólares e levou o candidato ao
segundo turno. O modelo de propaganda que vingou foi o de Collor:
dispendioso e profissional, bancado em boa parte ilegalmente, dispondo
de apetrechos tecnológicos de última geração, sondagens de opinião
pública a rodo, e com a forma da publicidade de mercadorias.
Junto com a forma, que tornou as campanhas de Lula e Dilma parecidas
com as de seus adversários, mudou o conteúdo da política do Partido dos
Trabalhadores. Ele foi alterado por fatores externos – desencadeados
pelo desmoronamento do mundo nascido com a Revolução Russa – e internos,
e também pelo desígnio dos seus formuladores. “Havia uma grande dúvida
se o pt era um partido de esquerda, e o governo Lula acabou sendo um
governo extremamente conservador”, declarou o banqueiro Olavo Setúbal em
2006, poucos meses antes da reeleição presidencial. “Não tem diferença
do ponto de vista do modelo econômico. Eu acho que a eleição do Lula ou
do Alckmin é igual. Os dois são conservadores. Cada presidente tem suas
prioridades, mas dentro do mesmo leque de premissas econômicas.”
O empresário Emílio Odebrecht, que organizara um jantar em sua casa
para PC Farias e esposa, e cuja empreiteira fizera doações a Collor,
retomou o tema no início de 2008:
“Nós quebramos um tabu enorme, que era a chegada de um presidente de
esquerda e, mais ainda, um líder dos trabalhadores, e esse tabu não
existe mais. O investidor estrangeiro sempre perguntava como se
comportaria o Brasil com um presidente com esse perfil de esquerda, com
essa ideologia, e veja o que aconteceu. Foi a melhor coisa que poderia
ter acontecido para o nosso país, sem dúvida nenhuma. O investidor
estrangeiro viu que os contratos foram preservados, que a linha
ideológica é até mais rígida, em determinados aspectos, do que a dos
anteriores. O Brasil tem mais consistência e inspira outro nível de
confiança ao investidor. Essa quebra de tabu tranquilizou os
investimentos, e o que se viu é que esse governo não tem nada de
esquerda. O presidente Lula não tem nada de esquerda, nunca foi de
esquerda.”
Identidade dos veículos
Na época da campanha contra Collor havia menos colunas, o que levou os editoriais do Estadão e da Folha
defendendo a saída do presidente a sobressaírem, reforçando a
identidade dos jornais e a sua posição institucional. E a opinião dos
comentaristas não pesava tanto quanto as reportagens – se bem que um
deles, Ricardo Noblat, do Jornal do Brasil, tenha sido demitido por criticar Collor na campanha eleitoral.
O colunismo se disseminou desde então. Numa contagem recente, a Folha
dispunha de 113 colunistas. Mesmo que enfraqueça a voz própria de uma
publicação, e eventualmente prevaleça sobre a reportagem, o colunismo é
uma tradição brasileira que propicia maior diversidade aos órgãos de
imprensa. Mas convém não esquecer que ele custa menos que a reportagem.
Para fazer esta última é preciso procurar fontes, entrevistar, viajar,
pesquisar, checar e editar o que tiver sido apurado. Para escrever
colunas basta um computador. E o recurso a dezenas de comentaristas não é
prática dominante na boa imprensa internacional. The New York Times tem doze colunistas; Le Monde,
nenhum. São jornais que também enfrentam apertos. Numa maré montante de
dificuldades, o diário americano tomou emprestados 250 milhões de
dólares do bilionário mexicano Carlos Slim, que se tornou um dos seus
maiores acionistas. O francês cortou repórteres, páginas e circulação, e
os jornalistas perderam poder na empresa que o adquiriu quando uma onda
de crise quase o punha a pique.
Muitos articulistas brasileiros publicam suas colunas em diversos
jornais, que as reproduzem em seus sites, onde são copiados e se
espalham pela internet. A ausência de exclusividade enfraquece a
identidade dos diários. E não só ela. Conglomerados da imprensa buscam
padronizar enfoques das suas publicações. As Organizações Globo, por
exemplo, promovem reuniões semanais dos seus diretores de redação para
definir a abordagem de certas notícias e iniciativas da empresa, o que
de maneira alguma é feito ao arrepio do pensamento dos seus
proprietários. Até se traduziu um termo para batizar a prática:
sinergia.
O grupo capitaneado pelo Le Monde, no entanto, preserva a identidade dos órgãos sob o seu guarda-chuva, como La Vie, revista semanal cristã que circula há décadas, e Le Monde Diplomatique, que propugna uma globalização à esquerda. Nos Estados Unidos, a editora Condé Nast resguarda a distância entre The New Yorker e Vanity Fair.
O que ajuda a entender que o diretor de redação da primeira tenha dado
na revista o seu apoio à invasão do Iraque, enquanto em Vanity Fair isso não ocorreu, e o seu diretor se tornou um afiado crítico da guerra.
Tico de estrídulo
Fernando Collor refez a vida particular. Separou-se de Rosane e
casou-se com a arquiteta alagoana Caroline Medeiros. Tatuou o nome dela
no pulso esquerdo e tiveram gê-meas, Celine e Cecile. Ele é pai de
outros três filhos, Arnon Affonso e Joaquim Pedro, com Lilibeth Monteiro
de Carvalho, e Fernando James, que teve fora do casamento, com
Jucineide Braz da Silva, e reconheceu legalmente ao deixar a
Presidência.
Collor não dispõe mais dos préstimos de uma figura façanhuda como Paulo
César Farias. Todas as investigações posteriores sobre o assassinato do
gerente do seu caixa dois levaram à mesma conclusão: foi um crime
passional, cometido pela namorada que ele pretendia abandonar na noite
em que morreu. Em nenhum levantamento jornalístico ou policial surgiram
testemunhas nem provas de que PC Farias tenha sido vítima de um complô.
Condenado pelo Congresso por crime de responsabilidade, Collor foi
impedido de exercer função pública durante oito anos, mas o Supremo
Tribunal Federal o absolveu da acusação de corrupção passiva. Ainda tem
uns poucos processos pendentes e retomou a carreira política. Disputou
duas vezes o governo de Alagoas e foi derrotado. Em 2007, elegeu-se
senador pelo obscuro Partido Renovador Trabalhista Brasileiro,
agremiação que apresenta a legenda a candidatos nanicos. Já no primeiro
dia de mandato, Collor trocou-o pelo Partido Trabalhista Brasileiro, da
base do governo. O caminho de Swann encontrou-se com o de Guermantes:
Lula e seu adversário de 1989 passaram a apoiar um ao outro, e a Dilma
Rousseff. Terminaram no mesmo palanque e, sorridentes, trocaram afagos
em público.
Senador discreto e aplicado, Collor prefere a atividade dos comitês a
pronunciamentos em plenário. Fala pouco sobre o passado e quase nunca à
imprensa. Mas falou de Veja. Membro da Comissão Parlamentar de
Inquérito criada para investigar Carlos Cachoeira, ele defendeu a
convocação do jornalista Policarpo Junior, para que o redator-chefe da
revista explicasse o seu relacionamento “de quase uma década” com o
contraventor. E lançou no Parlamento um repto ao dono de Veja, a quem se
referiu com um termo da máfia italiana, “capo de um bando de dez”:
“Em nome da verdade, desafio o chefe maior desse grupelho, o senhor
Roberto Civita, a comparecer também à Comissão para falar da coabitação
que, a seu mando, a revista de sua propriedade e alguns de seus
jornalistas mantêm com o crime organizado. Se a razão do senhor Civita é
tão patente e lúcida, se sua defesa da liberdade é tão consistente, não
terá este capodecinaqualquer receio de se manifestar pessoalmente.”
Collor lembrou o que a imprensa fez quando da sua destituição do Planalto, e encerrou a arenga com um tico de estrídulo:
“Tenho sistematicamente me manifestado contrário a qualquer controle
dos meios de comunicação. Sempre defendi a liberdade de imprensa, o
contraditório, a divergência, o debate e a transparência dos fatos.
Mesmo na Comissão Parlamentar de Inquérito em que me alvejaram, sempre
abri todas as informações, jamais cerceei o trabalho dos meios de
comunicação, e, assim mesmo, eles se valeram de atitudes criminosas,
desonestas, fraudulentas. Por isso, ninguém tem autoridade para dizer
que eu não defendo a liberdade de imprensa. Ninguém!”
Interesse próprios
Como senador, Collor não foi alvo de denúncias. Salvo uma, na qual o
acusaram de uso indevido de um carro do Senado durante o recesso
parlamentar. Ele explicou que o veículo servia a seu gabinete e o caso
não teve consequência. Foi um episódio de pouca monta se comparado às
negociatas que se repetem continuamente: anões do orçamento,
privatização das teles, compra do sistema de monitoramento aéreo da
Amazônia, obtenção de votos para a emenda da reeleição, informações
privilegiadas na desvalorização do real, mensalão, demissão de seis
ministros suspeitos de corrupção no primeiro ano do governo Dilma, o
conluio do senador Demóstenes Torres com Cachoeira e asseclas etc.
Paulatinamente, as mutretas adquiriram som e imagem, viraram Escândalos
da República 1.2. As inovações tecnológicas deixaram marcas na
paisagem. Minicâmeras, microfones direcionais, sistemas que grampeiam
simultaneamente dezenas de telefones, circuitos de vigilância e
celulares que captam cenas mal iluminadas deram concretude às
malversações. O governador flagrado no seu gabinete botando na mala
maços de notas ou outro tomando champanhe aos berros com um empreiteiro
que usa guardanapo na cabeça são mais eloquentes que a cópia borrada de
um fac-símile comprovando falcatruas em Canapi. O sujeito entra num
prédio para pegar propina e dias depois o que fez pode ser visto na
internet e na televisão. A espetacularização ficou mais fácil.
E mais perigosa. O uso de gravações pela imprensa aproxima repórteres
de policiais e criminosos. Uns gravam sob a proteção da lei (agentes de
operações espalhafatosas da Polícia Federal) e outros ilegalmente
(gangues que vivem de achaques e do comércio do que roubam). E ambos têm
interesses próprios ao passar grampos e vídeos a jornalistas. Cria-se
um laço no qual a promiscuidade e a manipulação são as pontas da corda:
dou a fita, mas quero uma reportagem; dê-me a gravação e eu te protejo. É
grande o risco de alguém se enforcar.
Lições do passado
Num poema dos anos 40, W. H. Auden escreveu:
Aprendemos com o passado? A polícia,/ Os estilistas de moda, todos os que/ Manejam os espelhos dizem: Não.
Pois Notícias do Planalto é uma tentativa de dar resposta
positiva à pergunta do poeta. O livro foi pesquisado e escrito em quase
dois anos de dedicação integral, num período sabático, e se beneficiou
do quanto aprendi na cobertura da campanha, da Presidência e do
impedimento de Collor.A vontade era descobrir novas notícias e
sistematizar numa narrativa o que fizeram jornalistas e governantes
naquela quadra. Para evitar que a experiência se perdesse, e para que se
pudesse aprender algo com ela.
Como a imprensa não tinha nada digitalizado, o trabalho começou pelo
estudo da bibliografia e de 50 quilos de recortes de jornais e revistas,
bem como de gravações de programas eleitorais e de telejornais.
Constatei que, para entender o jornalismo de então, seria preciso recuar
algumas décadas e examinar a formação dos órgãos de imprensa, e assim
sendo investigar quem foram os homens que os construíram. Fiz uma lista
dos casos, problemas e histórias que abordaria, e das pessoas que
deveria procurar. Levei por escrito as questões a cada um dos 141
entrevistados e anotei as respostas. Fiz 43 perguntas a Boris Casoy. A
Collor, 150. Algumas entrevistas se estenderam e tiveram de ser
desdobradas em dois ou três encontros. Elas foram feitas em São Paulo,
no Rio, em Brasília e Maceió. Questões e respostas foram transcritas em
seguida num computador. Todas as transcrições estão guardadas, mas não
serão franqueadas porque prometi aos entrevistados não revelar quem me
contou o quê.
A pesquisa e as entrevistas resultaram num material bruto enormemente
rico. Mas considerações quanto ao tamanho e à complexidade do livro não
explicam a narração adotada. Achei mais produtivo expor o máximo do
material sem emitir opiniões. Acredito que uma visão acerca do que
levantei preside e permeia a narrativa. Poderia ter feito uma análise do
processo, ou ao menos das questões mais espinhosas apresentadas no
livro. Mas a intenção – e ninguém deve acreditar apenas nas intenções de
um autor: o que vale é o escrito – foi que o próprio leitor analisasse e
chegasse a conclusões. A começar pelo leitor que acompanha a imprensa e
pelo jornalista que a faz.
Ficaram de fora considerações sobre a relação entre empresários da
imprensa e jornalistas, tema bastante abordado quando do lançamento do
livro, em 1999. Houve quem dissesse que Notícias do Planalto
foi condescendente com os patrões, e mesmo os protegeu, sobretudo por
descrever as suas características pessoais e por mostrar o que os levou a
tomar tal ou qual atitude. E outros acharam o contrário, que os
resguardados foram os jornalistas, ou parte deles.
As avaliações conflitantes e mesmo o livro têm raízes no chão em que se
assenta a grande imprensa. Uns são proprietários e outros empregados,
mas cada edição de um noticioso é o fruto intelectual da ação comum de
ambos, e depende de um acordo estabelecido previamente entre eles. A
ação comum flui célere em dias de calmaria política e tende a se crispar
quando ocorrem crises. As posições políticas se polarizam e
divergências se espalham entre empresários e dentro das redações. A
eleição de Collor e as revelações que culminaram na sua saída do
Planalto foram crises que provocaram tomadas de posição de ambos os
lados, e no interior deles, rearranjando acordos estabelecidos.
De todo modo, ninguém perdeu o emprego por ter escrito isso ou aquilo de Notícias do Planalto. Exceto o autor do livro. Trabalhei quinze anos em Veja,
e nos quase sete em que fui o seu diretor de redação a tiragem dela
passou de 900 mil para 1.250 milhão de exemplares semanais. Preparava na
Editora Abril uma revista mensal de reportagens e artigos, para um
público menor, quando o livro saiu, o que fez com que eu fosse demitido
de pronto e o projeto cancelado. A vida seguiu adiante, trabalhei na Folha, fui correspondente em Paris da Rádio Bandeirantes, apresentador na Band News FM, fiz frilas para o Estadão e Bravo!, hoje estou no Roda Viva e sou repórter de piauí.
Aprendemos com o passado? Quiçá. Como disse outro poeta, T. S. Eliot:
O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos presentes talvez no tempo futuro,/ E o tempo futuro contido no tempo passado.
***
[Mario Sergio Conti é jornalista]